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terça-feira, 30 de junho de 2015

A Bela e a Fera - Capítulo II

CAPÍTULO II

Devia ter telefonado pedindo as compras, pen¬sou Laura, enchendo o carrinho e tentando ignorar as pessoas que a observavam, os jovens, muito mais jovens do que os que pensaria em namorar, fitando-a intensa¬mente. Ela sorriu docemente, um típico sorriso de passarela, admitiu, rindo baixinho. Alguns homens eram pescadores, e ainda usavam as botas de borracha da pescaria.
Checando a lista, Laura dirigiu-se ao caixa. Vai começar, pensou, vendo que as pessoas aproximavam-se de onde estava como felinos. Um adolescente que varria o chão chegou mais perto. A vendedora parecia não ter pressa, fitando-a demoradamente, apesar da fila. Os clientes não tiravam os olhos dela. Não era de admirar que Blackthorne não saísse de casa. O que teria acontecido com a hospitalidade do sul?
— Você é nova aqui? — perguntou a vendedora, uma loira que usava argolas enormes nas orelhas e mastigava chiclete.
— Sim. É uma linda ilha — disse Laura. Era melhor dei¬xá-los orgulhosos da terra onde viviam.
— Está no castelo, não é?
— Sou a babá que o Sr. Blackthorne contratou.
— Babá?! — exclamaram várias pessoas ao mesmo tempo. Laura olhou ao redor, fitando um a um, todos que estavam próximos.
— O Sr. Blackthorne está esperando a filha chegar, e estou aqui para cuidar dela.
— Pobre criança — disse uma velha senhora, num tom sombrio.
— Por quê? — perguntou Laura, embora soubesse a resposta.
— Imagine ter um homem tão horrível como pai.
— Conhece o Sr. Blackthorne? — perguntou Laura.
— Não exatamente.
Esperando que sua expressão fosse da mais pura inocência, indagou:
— Então, como pode saber como ele é?
— Ele nunca sai daquele lugar — disse a vendedora. — Não mostra o rosto há quatro anos. Nem mesmo Dewey, que mora lá, conseguiu vê-lo de perto.
Dewey, Laura imaginou, devia ser o caseiro, que ainda não conhecera.
— Ele está desfigurado — gaguejou o jovem que embalava suas compras.
— Se nunca o viu, como pode saber disso?
O garoto deu de ombros, como se fosse de conhecimento geral. Embora ninguém tivesse visto Blackthorne.
— Não acho que a aparência seja importante — respondeu ela, tentando controlar-se, e detestando que as pessoas dessem tanta importância às aparências. Ela sabia, por experiência própria, como isso era injusto e preconceituoso, embora por motivos opostos. As mulheres recusavam-se a serem suas amigas, acreditando que se imaginava melhor do que elas. Os homens quase pisoteavam uns nos outros para aproximar-se, todos tentando levá-la para a cama, ou convidá-la para um acontecimento social, onde pudessem exi¬bi-la como um troféu. Ninguém, nem mesmo o ex-noivo, conseguira ver além do rosto lindo que Deus lhe dera. E, aparentemente, ninguém queria ver além das cicatrizes de Blackthorne.
Tudo isso fazia Laura sentir um estranho impulso de de¬fender um homem que nem conhecia. Era difícil manter o con¬trole diante de tantos preconceitos.
— Coloque na conta dele, e mande entregar por volta das três — pediu, saindo depressa sentindo que todos os olhares a acompanhavam.
Em vez de pegar um táxi para casa, resolveu acalmar-se, caminhando pela pitoresca cidadezinha. Mas as lembranças continuavam a atormentá-la. A mãe, arrastando-a para comer¬ciais de tevê, desde bem pequena, os concursos, tudo que sem¬pre detestara. E quando crescera, escolhia participar apenas dos que lhe interessavam, porque queria ir para a faculdade, e precisava do dinheiro.
Olhando em volta, viu as vitrines das pequenas lojas, os bancos de madeira espalhados por vários locais, turistas e moradores passeando e fazendo compras. Dois homens mais velhos senta¬vam-se junto ao cais, trocando histórias de pescaria. Laura sorriu, lembrando-se do avô, sentado na cadeira de balanço da varanda, esculpindo pequenos animais de madeira para que ela e os irmãos brincassem. Aliás, eram os únicos brinquedos que tinham. Uma vida simples, mas cheia de amor, pensou, com saudade do avô.
Ela respirou fundo, saboreando a brisa fria que vinha do mar. Como o sol estava alto ainda fazia calor, mas logo chegaria a estação dos furacões, com chuva, umidade e frio intenso. Cruzando os braços para proteger-se, andou mais depressa para a pequena estrada que levava ao castelo. Em poucos minutos entrava no calor acolhedor da casa.
Depois de preparar café, esfregou os braços gelados, e ouviu um ruído vindo de fora. Franzindo a testa, foi até a porta de trás e afastou as cortinas que cobriam a pequena janela. Todos os seus impulsos femininos tornaram-se vivos e intensos, ao ver as costas nuas do homem que cortava lenha. Os músculos poderosos mo¬viam-se numa dança da qual não conseguia afastar os olhos.
Blackthorne. Como era bonito, usando apenas jeans e botas! De onde estava, podia ver apenas o perfil do rosto, com certeza o lado sem cicatrizes, já que os traços eram aristocráticos e bem-feitos. Os cabelos escuros flutuavam ao vento, cobrindo totalmente a nuca. Os braços eram fortes, musculosos, e ao erguer o machado para cortar mais uma tora, Laura pôde ver como eram pode¬rosos, já que a madeira partiu-se em um golpe. Ele deu mais alguns golpes e depois parou apoiado no cabo do machado. Quando começou a falar, Laura percebeu que não estava so¬zinho e foi até a janela. Outro homem, mais velho, sentava-se num banco e brincava com um canivete. Era Dewey Halette, e aparentemente era bem mais do que um caseiro. Era amigo de Blackthorne. Talvez seu único amigo. Dewey conversava animadamente, o rosto moreno e enrugado meio coberto pelo boné. A camiseta escura ajustava-se ao tórax esguio, e o jeans estava tão gasto nos joelhos que a cor desbotara. Ela observava os dois homens, e como se Blackthorne soubesse que estava ali, continuava de costas. Ainda assim, pôde ver cicatrizes lon¬gas e finas descendo pelas costelas, como se tivessem sido feitas por adagas afiadas. Devia ter sido muito doloroso, e mais uma vez, imaginou como teria sido o acidente. De repente, ele inclinou a cabeça para trás e riu. O som, carregado pelo vento, chegou até Laura, que estremeceu, sentindo um estranho calor percorrê-la. Pelo menos ele não tinha perdido a capacidade de desfrutar de pequenos prazeres, como conversar e rir com um amigo, pensou, desejando juntar-se a eles. Mas, se quisesse que o visse, já teria aparecido.
Ele disse algo que fez Dewey corar. Logo se levantava, sorria para Blackthorne e colocava mais toras aos pés dele. Black¬thorne continuou a trabalhar, cortando tora por tora, enquanto Dewey empilhava os pedaços. Então, o caseiro parou, olhando diretamente para ela.
Laura sustentou o olhar.
Blackthorne largou o machado e pegou o casaco com capuz. Saindo para a varanda, Laura gritou:
— Desculpe-me. Não tive a intenção de me intrometer.
— Mas fez exatamente isso — disse Blackthorne, vestindo o casaco de costas para ela.
— Desculpe-me. Vou para outro lugar.
Richard suspirou, desejando virar e fitá-la nos olhos.
— Não quero que sinta que precisa afastar-se de onde estou.
— Mas é exatamente o que quer. Preferia que eu não estivesse aqui, não é mesmo? — Ela viu que os ombros dele enrijeciam. — O mínimo que podemos fazer é sermos honestos um com o outro.
Richard apertou os lábios, suspirando mais uma vez.
— É verdade. Mas posso garantir que não me importo de não ter mais a casa só para mim.
— Não precisa se esconder.
— Eu não me escondo. Escolhi este estilo de vida, Srta. Cambridge, e nos últimos quatro anos aprendi que é a melhor maneira de viver.
— Quer dizer, a mais fácil.
— Nada é fácil para mim, senhorita.
— E quanto a sua filha? Ela espera encontrar o pai. Precisa de carinho e conforto. Perdeu a mãe.
O peito de Richard apertou-se ao pensar na tristeza de Kelly, e como gostaria de confortá-la.
— Foi por isso que a contratei Srta. Cambridge.
— E não se importa com ela?
Como podia dizer a Laura que ao saber da existência da filha, poucas semanas atrás, sentira raiva da mãe de Kelly, por abandoná-lo, carregando no ventre o bebê que era deles, por não lhe dar uma chance de conhecer a criança, antes de lhe tirar tudo que tinha. O amor pela mulher desaparecera quando ela partira, abandonando-o quando ele mais precisava, condenando-o à prisão e ao isolamento. Como podia esquecer o passado?
— Eu me importo. Muito. Mas mal tive tempo de me acos¬tumar com a idéia de que sou pai. — Ele começou a andar para a garagem.
— É bom se acostumar — disparou Laura, enquanto ele se afastava. — Depois de amanhã ela estará aqui, querendo vê-lo, e como poderei explicar que o pai não quer encontrá-la?
— Diga a verdade — respondeu ele, sem parar de andar. — Que o pai não quer ser mais uma fonte de pesadelos para ela.
A resposta deixou-a sem ação, e antes que pudesse pensar no que dizer, ele tinha desaparecido. Virando-se, ela fitou Dewey.
— Acho que as coisas não correram muito bem, não é? 
Dewey observou-a atentamente, como se estivesse avaliando cada detalhe, e Laura não saberia dizer qual fora a impressão do homem, já que sua expressão continuava impenetrável.
— Não madame.
— Sou Laura Cambridge.
— O Sr. Blackthorne me disse.
— E o que mais ele falou a meu respeito?
A expressão de Dewey continuou impenetrável, e ele virou-se para arrumar as pilhas de madeira. Por certo precisariam delas para aquecer-se nas noites de tempestade, imaginou Laura, pensando em como o castelo de pedra devia ser frio no inverno.
— Todos na cidade têm uma imagem errada dele. Mas já deve saber disso, não é? — Ela admirava o fato do caseiro respeitar o segredo de Blackthorne, mesmo exposto à curiosidade de todos.
Dewey arrumou mais uma pilha.
— Poderia pelo menos me dizer como é a rotina dele? Assim poderei ficar fora do caminho.
Dewey afastou o boné para trás fitando-a por alguns ins¬tantes, antes de falar:
— Não.
— O quê? — Ela não podia acreditar no que ouvira.
— O Sr. Blackthorne não segue rotinas, faz o que quer. Se encontrá-lo novamente vai ter que lidar com a situação.
— Obrigada pela ajuda. — Laura cruzou os braços, fitando-o diretamente. — Prefere vê-lo se escondendo, ou saindo da toca para conhecer a filha?
Ele não respondeu, e ficou bem claro para Laura o quanto era leal ao patrão. Mas quando ele segurou o machado, disposto a recomeçar o trabalho que Blackthorne interrompera, ela o impediu, segurando o braço que se erguia.
— Não vou sair daqui até ter certeza de que Kelly tem todo o cuidado e atenção que merece. Entendeu Sr. Halette?
Os olhos dele brilharam, embora a expressão do rosto con¬tinuasse inalterada.
— Sim, senhora. E pode me chamar de Dewey, senhora.
— Laura — corrigiu ela, virando-se para a casa e acrescen¬tando: — Estou esperando que entreguem as compras. Assim, acho melhor recolocar aquela expressão séria no rosto. Afinal, é o que todos esperam, não é mesmo?
Dewey olhou-a afastar-se, lutando para esconder um sorriso.
— Sim, senhora.
O doce aroma de algo assando espalhava-se pela casa, mes¬clando-se ao som de risadas. Aquilo o atraiu, embora descesse pela antiga escada de serviço, para não ser visto. Passagens es¬condidas atrás das paredes formavam um labirinto, através do qual podia mover-se sem ser visto, apesar dos corredores serem bem estreitos. Fazia muito tempo que não passava por ali, depois de tê-los descoberto. Não gostava da sensação de passar por eles, mas havia pessoas na casa, depois de anos em que ele e Dewey haviam sido os únicos moradores. Mas agora ela estava ali, as¬sando algo na cozinha. A vontade de vê-la o atraía tanto quanto o aroma do que assava no forno. Mas, acima de tudo, era a risada límpida e espontânea que o atraíra. Podia distingui-la facilmente no meio das outras vozes. Havia algo em Laura Cam¬bridge que lhe despertava sensações que julgara adormecidas. Ela o desafiava, provocava, mas Richard sabia que, se cedesse à tentação de ver o rosto dela, teria muito a perder. A filha precisava de Laura, uma vez que ele não podia ficar com ela.
Parando no fim do corredor escuro, afastou um pouco o painel disfarçado que cobria a parede. Ela estava tirando uma assadeira do forno e colocando biscoitos num prato. Era uma cena tão doméstica, comum, algo que Andréa nunca se incomodara em fazer, que o pegou de surpresa. Havia três pessoas sentadas nos bancos altos. Laura ofereceu os biscoitos aos convidados. Convidados, ali, na casa dele. Pela primeira vez. Queria ficar zangado. Queria que fossem embora, pela simples razão de que não podia unir-se a eles. E ao vê-la conversando, tão ani¬mada, seu isolamento parecia ainda mais difícil e amargo.
Mas ela era tão linda, os homens pareciam fascinados pelo que dizia. E então, quando Laura inclinou-se para colocar outra assadeira no forno, Richard percebeu que todos olhavam as formas do corpo bem-feito. Será que os homens estavam ali movidos pela curiosidade em relação a casa, ou apenas por causa dela?
— É uma casa muito grande — disse o adolescente, que ele reconheceu como o entregador que trazia as compras.
— Sim, é enorme — respondeu ela, colocando colheradas de massa na fôrma.
— Apavorante — disse um dos homens, olhando ao redor.
— Adoro a casa — afirmou Laura. — É linda e charmosa. A arquitetura, as pedras, tudo lembra a história de muitas partes do mundo.
Era exatamente o que sentira ao ver a casa, pensou Richard, inclinando-se para ouvir melhor.
— Você já o viu?
— É claro.
— É muito horrível?
Richard esperou pela resposta, prendendo a respiração.
— Não tem nada de mais. — Nada de mentiras, nem de informações, e ele imaginou por que Laura estaria agindo assim.
— Então por que se esconde?
— Ele é um homem reservado, e talvez por não ter sido bem recebido... — Laura parou de arrumar os biscoitos e virou-se, fitando-os por cima do ombro. Richard percebeu a de¬terminação na voz dela. — E se alguém ousar fazer qualquer comentário na frente da filha dele terei que mostrar como meu avô me ensinou a atirar muito bem. E também como tirar a pele dos animais que caçávamos.
Richard disfarçou uma risada, e quando olhou novamente, os convidados riam, sem jeito, não muito certos se ela falava a sério ou não. Logo se despediam, agradecendo pelo café.
Laura acompanhou-os, fechando a porta assim que saíram. Voltando para o balcão, pegou a fôrma que acabara de encher e colocou-a no forno, no lugar da que já estava pronta. Não co¬nhecia nenhuma criança que não gostasse de biscoitos de choco¬late, e esperava que Kelly não fosse uma exceção. Queria que a menina se sentisse bem-vinda naquela casa escura e silenciosa.
De repente, percebeu que não estava sozinha e ergueu o olhar. Então o viu, uma sombra escura entre a parede do canto e a porta entreaberta da despensa. Uma sombra grande, larga, da qual só podia ver o jeans surrado que cobria as pernas fortes. Como chegara até ali sem que o visse?
— Gostaria de pensar que a receita de biscoitos da minha avó o atraiu até aqui, mas não tenho ilusões.
— Linda e esperta.
Laura enrijeceu de imediato. Será que todos tinham que falar de sua beleza, nos primeiros dez minutos de conversa?
— Quer um biscoito?
— Não, obrigado.
— Não diga que é uma dessas pessoas que não gosta de biscoitos de chocolate...
— Não.
— Já sei. Não quer vir até a luz para pegá-lo, não é? 
Ele não respondeu.
— O que mais nega a si mesmo, ao escolher viver no escuro? — Ao falar, ela atirou um biscoito na direção dele.
A mão surgiu na luz, apanhando o biscoito no ar, e ela pôde ver o anel de sinete faiscar.
— E o que vai negar a Kelly?
— Pesadelos, Srta. Cambridge.
— Pode me chamar de Laura. E acho que está enganando a si mesmo.
— Não sabe nada a meu respeito, bela — zombou ele. Ela largou a espátula sobre o balcão, num gesto brusco.
— Tem razão, não sei. Assim como não sabe nada a meu respeito... Fera. — Virando-se para o fogão, tirou a assadeira com os biscoitos prontos, colocando outra no lugar. Fechando os olhos, tentou, em vão, afastar as lembranças dolorosas. Bela... Rainha de beleza. De que lhe adiantara isso, se não tinha sequer con¬seguido manter o noivo, pensou, cerrando os punhos.
Richard endireitou-se, imaginando por que estaria tão perturbada.
— Laura...
O nome foi pronunciado num tom rouco, sensual, oferecendo uma simpatia que ela não desejava. Os homens, as pessoas, em geral, notavam-lhe primeiro o rosto. Era natural. E Richard era um homem. O que mais poderia esperar?
— Desculpe-me — disse Laura. — Fui muito cruel. 
Richard já ouvira coisas piores.
— Deixei você furiosa. Diga por que.
— Não é nada. — Ela continuava arrumando os biscoitos, embalando-os em sacos plásticos.
— Mentirosa.
— Vamos começar de novo? — perguntou baixinho. Abriu a geladeira e pegou um pedaço de carne e alguns legumes, que colocou sobre o balcão. Não se conheciam o bastante para falar sobre o passado dela, nem pretendia começar a lamentar-se. Tinha muito que fazer, e não desperdiçaria energia com lembranças tristes. Depois de temperar a carne, voltou a colocá-la na ge¬ladeira. Cortou os legumes cuidadosamente, tentando ignorar a presença máscula. Mas era impossível. O calor que emanava dele era tão forte, que parecia estar perto de uma fogueira.
— Está me observando.
— Como sabe?
— Posso sentir.
Será que sabia que ele também podia senti-la?
— E o que sente?
Laura parou. As palavras, murmuradas num tom suave, convidavam à intimidade, trazendo um desejo inesperado. O coração dela disparou.
— É como uma invasão. — Ela arrumou os legumes numa travessa, cobrindo-os com água. — E não gosto disso — com¬pletou, colocando-os na geladeira.
— É uma mulher muito linda, Laura. Que homem não a olharia? Você sabe disso.
— Sim, sei como as pessoas valorizam a aparência — mur¬murou, desligando o forno.
— Eu também — declarou Richard, num tom amargo.
— Então temos algo em comum. — Ela tirou a última assadeira do forno, colocando-a sobre o fogão, antes de virar-se.
Ele tinha desaparecido. Como se um vento frio a atingisse, soube que não estava mais ali.
— Também não gosto disso, Sr. Blackthorne — gritou, para a casa vazia.
Não houve resposta, e nem ela esperava isso.
Richard desceu pela escada de serviço trazendo os pratos do jantar. Depois de colocá-los na lavadora, pegou um biscoito na assadeira sobre o fogão. Mastigando, atravessou a sala de jantar e chegou à biblioteca, estranhando o ar frio que pene¬trava na casa. Ao entrar na sala de estar, parou de repente. Cada fibra do corpo dele reagiu ao vê-la. Laura estava na varanda, atrás da sala, e as portas francesas estavam com¬pletamente abertas. As mãos dela apoiavam-se na grade, e o roupão leve, verde-claro, flutuava ao sabor da brisa da noite sem lua. A frente dela, o mar batia no cais, iluminado apenas pelas luzes suaves que cercavam a casa.
Richard poderia jurar que estava vendo um anjo. O vento erguia os cabelos acobreados, fazendo-os flutuar.
— Não é fantástico? — perguntou ela.
Ele enrijeceu, sentindo-se encurralado na própria casa.
— Não é? — insistiu, virando-se levemente na direção dele. Richard sabia que não podia vê-lo claramente, com a luz trás dela.
— Gosta deste tempo?
Laura voltou a olhar o mar. Ao longe se viam relâmpagos.
— É meu favorito. Tempestades, trovões, chuva... Richard percebeu que ela lhe dera as costas de propósito, dando-lhe a chance de se aproximar. O gesto o comoveu, mas ao mesmo tempo deixou-o inquieto. Será que ela viraria de repente e começaria a gritar? Ainda assim, reconheceu que não podia resistir ao desejo de se aproximar mais um pouco. Saindo para a varanda, se encostou nas cortinas que voavam pelas portas abertas e que podiam lhe dar alguma proteção.
— Obrigado pelo jantar.
Ela deixara a bandeja do lado de fora da porta do quarto dele, numa mesinha que carregara para cima.
—- Por nada. Não precisa comer lá em cima, sozinho, Sr. Blackthorne.
— O que pretende? Que jantemos como duas pessoas civilizadas?
— Por que não?
— Acho que já sabe a resposta.
— E o que devo dizer a Kelly? Sinto muito por ter perdido sua mãe, e olhe, na verdade não tem um pai. Apenas um bem feitor.
— Diga a ela o que achar melhor.
— Sei que se importa Sr. Blackthorne. Vi o quarto dela.
— Só porque não quero vê-la, não significa que não quero que fique confortável aqui. Não percebe? Ela é uma criança. Um simples olhar para o que sobrou do meu rosto, e terá pesadelos por uma semana. — Ele sacudiu a cabeça. — Acho que devo poupar a nós dois dessa situação.
Laura chegou mais perto, e viu que ele cruzava os braços à frente do peito, numa atitude defensiva. O gesto era claro. Não poderia alcançá-lo. Não agora.
— Acha mesmo que uma criança vai se satisfazer com isso?
— Terá que ser assim.
— Mas sou uma estranha.
— Eu também.
Laura suspirou frustrada, cerrando os punhos.
— É um homem muito difícil.
Houve um instante de silêncio, antes de ele responder:
— Só quero protegê-la.
— Impedi-la de conhecê-lo não é proteção.
— Por acaso é uma autoridade em crianças? — A voz dele revelava descrença.
— Tenho alguma experiência.
— É mesmo?
Pouco importava o tom crítico na voz dele, pensou Laura.
— Não gosta que outras pessoas vejam o que lhe aconteceu, e então se esconde. Só vê aquilo que quer. Não tive filhos, mas gostaria de ter. Fui professora na escola da embaixada por vários anos, e cursei psicologia infantil na universidade. Além disso, sou a mais velha de cinco irmãos. Não acha suficiente?
Com raiva, afastou-se da grade e já ia entrar, quando Richard segurou-a pelo braço. Os dois foram envolvidos pelas dobras das cortinas que flutuavam ao vento.
— Sim. É suficiente.
Laura mal conseguia respirar, e seu coração batia acelerado. Ele era um homem grande, forte, e os dedos circundavam-lhe o braço, impedindo-a de mover-se. Estava consciente da pro¬ximidade dele, do perfume masculino, do corpo que quase to¬cava o dela, fazendo-a estremecer.
Ele era misterioso, intenso. O que a atraía não era a solidão dele, nem a amargura. Era o homem que sofrerá muito, mas sobrevivera. Que não deixara ninguém se aproximar. Laura viu a sombra da cabeça dele aproximar-se e soube que desejava beijá-la. E quase de¬sejou que o fizesse.
— Você tem perfume de... Liberdade — sussurrou ele, cada célula do corpo gritando que era um homem, e que ela era uma linda mulher.
Mesmo sabendo que devia fazer anos que ele não estava com uma mulher, que devia afastar-se depressa, Laura foi in¬capaz de resistir ao desejo de tocá-lo. Erguendo a mão, colocou-a no peito forte.
A respiração dele ficou ofegante, e num gesto brusco afas¬tou-se, subitamente consciente do que acontecia.
— Não quero sua piedade, e isto é errado.
Ele afastou-a e Laura perdeu o equilíbrio, enquanto Richard entrava depressa, desaparecendo na casa, de volta à sua ca¬verna escura. Queria dizer-lhe que a última coisa que sentira em seus braços era piedade. Mas ele já se fora.

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