CAPÍTULO IX
Kelly não estava no quarto. Quando Laura a deixara, estava quase dormindo, mas ao en¬trar para ver se estava bem, viu a cama vazia. E não respondeu quando ela chamou.
Laura abriu uma porta, procurando no outro quarto, fechou-a e foi ao quarto seguinte. Chamou Kelly várias vezes, mas não obteve resposta. Tinham brincado muito naquele dia, já que não queria pensar em Richard. Mas não tinha funcionado. Mesmo depois da cavalgada, das horas brincando na praia, de fazer ar¬tesanato com Kelly, ainda sentia os lábios dele em sua pele. Nem mesmo o chuveiro frio, que imaginara amenizar o calor e o desejo que ainda vibravam em seu corpo, tinha adiantado.
— Kelly? Querida? — O som ecoou no quarto vazio.
O tom de voz foi ficando mais alto quando não conseguiu encontrá-la, e o pânico começou a dominá-la. Correndo de um quarto para o outro, chegou à ala oeste, e entrou no quarto amarelo. Ali estavam as telas e pincéis, exatamente como os deixara. Laura olhou para a calça de pijama caída no chão com expressão de desgosto, ao lembrar como havia se aban¬donado ao toque de Richard, se esquecendo de tudo. Pegando-a com um gesto brusco, voltou ao corredor principal, abrindo armários, olhando atrás de portas.
— Venha, Kelly! Isso não tem graça.
Parou de repente, pensando ter ouvido um som abafado, na direção do corredor principal. Mas não encontrou nada ali.
Laura saiu correndo de casa, encontrando Dewey na gara¬gem. Ele limpava o carro e ergueu o olhar ao vê-la.
— Ajude-me a procurar Kelly. Não consigo encontrá-la. Acho que deve estar se escondendo de propósito.
Preocupado, Dewey largou tudo e saiu para procurar a me¬nina nos jardins e nos outros locais fora da casa, enquanto Laura retornava para dentro.
Olhando pela janela do salão, procurou ver se havia pegadas na areia, na direção da água, mas não havia nenhum sinal de que Kelly tivesse passado por ali. Laura sentiu uma ponta de alívio, mas ainda assim, onde ela estaria? Por que não respondia?
Laura continuou a chamar checando todos os lugares onde uma criança poderia se esconder. O medo crescia dentro dela. Embora a casa fosse segura, protegida por alarmes, continuava pensando no que Richard dissera. Que alguém poderia seqües¬trar a menina para pedir resgate. Não queria assustá-lo, mas Dewey entrou e disse:
— Nada, nem sinal dela.
Laura agradeceu, correu para a escada e subiu os degraus de dois em dois, na esperança de que Kelly tivesse voltado ao quarto. Mas a cama estava vazia. Voltou a chamar, sem obter resposta.
Laura ouviu ruídos no quarto de Richard, e a raiva da noite anterior voltou. Subindo a escada, bateu na porta.
— Sim?
— Abra a porta!
— Não.
— Já disse que estou cansada de ouvir isso. Agora, abra, ou juro que vou derrubá-la com uma das suas preciosas espadas antigas.
Richard olhou para a porta, desejando abri-la e beijar Laura.
— Então decidiu apelar para a violência? — provocou.
— Preciso de sua ajuda, Richard. Kelly desapareceu.
Richard soltou os pesos com que se exercitava, e eles pro¬vocaram um baque surdo ao bater no chão.
— O quê?
— Ela está na casa, tenho certeza. Não há pegadas na areia, e Dewey não a encontrou lá fora. Estava dormindo no quarto e desapareceu.
— E a gatinha?
Laura franziu a testa.
— Também não está em lugar algum. Ela ouviu um grito abafado.
— Meu Deus, eu posso ouvi-la. Onde estará?
Richard vestiu uma camiseta.
— Vou encontrá-la.
— Como pode fazer isso trancado aí dentro? Que droga, Richard, saia! Preciso de ajuda.
Richard foi até a porta, sem abri-la.
— Calma querida. Eu vou encontrá-la.
O tom da voz dele acalmou-a. Ele a encontraria. Mas não podia ficar parada, esperando. E decidiu prosseguir em sua busca.
Agarrando uma lanterna, Richard deslizou para a escada de serviço escondida entre às paredes, e desceu um andar, dirigindo-se ao outro lado da casa.
— Kelly? Kelly?
— Papai?
— Fique onde está, princesa. Já estou chegando.
— Estou com medo... — A gatinha miou.
— Eu sei querida. Continue falando comigo. — Richard subiu a escada estreita. — Pode ver a lanterna?
— Não. — Era possível perceber o pânico na voz dela.
— Está tudo bem, princesa. Papai está aqui. Nada vai acontecer.
— Está bem.
Richard sorriu, percebendo que ela tentava ser corajosa.
Ele virou a curva seguinte, desejando que a passagem es¬treita tivesse alguma iluminação. A escada de serviço, entre as paredes, percorria todo o castelo, e embora ele conhecesse o caminho no escuro, Kelly poderia ficar presa ali durante vários dias, sem encontrar a saída.
— Como achou a escada na parede?
— Serabi passou por baixo da parede, no canto do meu quarto. Ele devia ter deixado parte do painel aberto na noite ante¬rior. A culpa era sua!
— Estou vendo a luz, papai.
O alívio era evidente na voz da menina. Logo Richard desviava o facho de luz, localizando-a. Inclinando-se, abraçou-a e pegou-a no colo. Se alguma coisa acontecesse com ela... Kelly passou os braços à volta do pescoço dele, e Richard beijou-a no rosto, aca¬riciando as costas da menina, que tremia e soluçava.
— Está tudo bem, querida. Papai está aqui.
— Eu estava com tanto medo...
— Eu sei meu bem, eu sei.
Richard carregou-a de volta para a saída. Apertando a sa¬liência na parede, a porta se abriu. Ele colocou-a no chão, e Kelly correu para o corredor.
— Laura, Laura!
— Oh, Kelly! — ela gritou, correndo para abraçar e beijar a menina. Kelly começou a rir. Richard ficou parado na soleira da porta entreaberta, vendo Laura abraçar a menina. O amor que sentia pela criança refletia-se nos olhos dela, misturado às lágrimas que tentava conter.
— Querida, onde você estava? Fiquei tão preocupada!
Agora ela saberia, pensou Richard.
— Dentro das paredes.
— O quê?
— Há uma escada de serviço, com passagens escondidas dentro da parede, que percorre toda a casa — explicou Richard.
Laura virou-se, olhando para ele. Semi-escondido podia ver apenas que usava short e uma camiseta preta. A luz refletia-se nos músculos fortes das coxas, e imagens da noite passada voltaram de repente. Mas Laura afastou-as com raiva.
— Passagens? — repetiu Laura. — Meu Deus, Richard! Ela podia ter caído e se machucado. Eu nunca iria encontrá-la! Você devia ter me avisado sobre isso.
— Sinto muito, Srta. Laura — disse Kelly.
— Não é sua culpa — disse Laura, abraçando-a carinhosamente.
— É assim que vem para o meu quarto não é, papai? — Kelly olhava para os dois, com expressão preocupada.
— Sim, princesa.
Não era de admirar que ele pudesse andar pela casa tão fa¬cilmente. Colocando a menina no chão, Laura cruzou os braços.
— Que notícia!
— Só fui ao quarto dela — esclareceu Richard, sabendo o que ela estava pensando.
— Jamais pensaria que fosse ao meu — disparou Laura. — Afinal, tem muitas luzes.
— Papai lê para mim todas as noites.
Laura olhou para Kelly, sem esconder a surpresa.
— O quê? — Ela fitou Richard, os braços ao lado do corpo.
— Você lê para ela? Vai até o quarto por trás das paredes?
— Sim.
Laura deu um passo à frente e colocou o dedo indicador no peito dele.
— Isso é.... É... — Ela suspirou, pousando a mão nos músculos fortes. — É maravilhoso, Richard. Fico feliz por vocês dois.
— Isso muda muito pouco.
— Mas me permite ver que pode se arranjar sozinho, se eu for embora.
Ele inclinou-se e Laura sentiu o perfume que usava o aroma masculino, e seus sentidos se aguçaram, desencadeando uma onda de desejo.
— Você não vai embora — resmungou ele. Não podia nem pensar nisso. Não agora.
— Por favor, Srta. Laura, não vá! Por favor! — pediu Kelly, e o pânico na voz da menina cortou o coração de Laura.
— Eu não vou embora, querida. Ainda não — disse num tom mais baixo para Richard, imaginando como conseguiria deixá-los algum dia. — Eu já disse — murmurou. — Não posso continuar assim.
Ele inclinou a cabeça, a boca a poucos centímetros dos lábios dela.
— Mas vai continuar.
Por Kelly. Era isso que ele queria dizer. Mas Laura não concordaria tão facilmente, sem discutir.
— Continuaremos nossa conversa mais tarde, Sr. Blackthorne — disse, virando-se para Kelly.
— Sim, bela, tem razão.
As palavras dele soavam como uma ameaça.
— Está zangada com o papai? — perguntou Kelly, enquanto Laura segurava a mão dela.
— Sim, querida.
— Por quê?
— Porque ele é... Teimoso. — É orgulhoso, desconfiado. Que¬ria que acreditasse nela, que confiasse nela. E que a beijasse, como na noite anterior.
— Oh!
Laura sorriu. Kelly não entendeu, mas segurou a mão dela.
— Venha querida. Ainda tem tempo de tirar uma soneca antes do jantar. — Kelly não pareceu muito animada, mas foi para o quarto, apertando Serabi contra o peito. — Quanto a você, Richard...
— Sim? — ele retrucou calmamente, observando o corpo delineado pela saia jeans justa e lembrando como era senti-la reagir ao toque de suas mãos.
Ela parou na porta do quarto de Kelly e virou-se, olhando para ele, meio escondido nas sombras.
— Tem pernas fantásticas — provocou, sem deixar de fitá-lo.
Ele riu, sentindo que as palavras dela faziam seu corpo arder de desejo, lembrando a noite anterior. E então, o batente da porta lhe pareceu uma barreira. De um lado havia apenas solidão, rodeando-o como uma nuvem sufocante. Do outro, estava Laura, a esperança, a liberdade e a oportunidade de ter muito mais.
Laura virava na cama, inquieta, e pela primeira vez o som de chuva e trovões não a reconfortava. Se não descansasse estaria exausta no dia seguinte, pensou, culpando Richard. Depois de dar banho e jantar para Kelly, tinha lido um pouco, desenhado, tomado chá de camomila. Mas nem mesmo o alívio de encontrar a menina sã e salva e a alegria de saber que Richard passava algum tempo com ela conseguiam aliviar a tensão que a dominava.
Estava inquieta, agitada, consumida pela paixão e o culpado era Richard. Os momentos que havia passado nos braços dele não lhe saíam da memória. Atirando as cobertas para o lado, levantou-se e foi até a janela. Puxando as cortinas, sentou-se na poltrona próxima e contemplou a tempestade. O mar estava escuro, e as ondas enormes explodiam numa espuma branca que se destacava à luz dos relâmpagos. Ela sentia-se exata¬mente como aquele mar, vivo agitado, selvagem.
Olhando para o roupão, sobre a poltrona, imaginou se de¬veria procurar Richard e tentar convencê-lo a confiar nela. Mas sabia que não adiantaria. Ele o faria quando estivesse pronto. Se algum dia estivesse... Se insistisse, tinha medo que ele recuasse, e pelo bem de Kelly não podia arriscar. Estava ali por causa da menina, lembrou a si mesma. A criança pre¬cisava de um pai de verdade, que pudesse encará-la e ao resto do mundo, sem qualquer restrição.
Parte dela sofria pelo homem gentil e terno, forçado a es¬conder-se. Pelo homem que desejava poupar sofrimento aos outros, mas sofria sozinho, escondido nas sombras.
Laura percebeu como gostava de Richard. E teve medo. Ti¬nha sido muito magoada por Paul, mas reconhecia que Richard era capaz de enxergar além das aparências.
De certo modo eram parecidos. O acidente mudara a vida dele por completo, alterando planos e prioridades. O noivado rompido mudara a sua vida, fazendo-a perceber que podia con¬fiar em poucas pessoas. E que era difícil encontrar alguém que a visse como era realmente, e não apenas sua beleza.
Richard achava que era bonita demais para querer um ho¬mem como ele. Mas não percebia que ela não enxergava as cicatrizes, não notava como ele procurava esconder que man¬cava levemente. Ela havia se encantado com a voz na escuridão, com os beijos ardentes que deixavam seu corpo em fogo, com o homem que conseguira ver nela a artista escondida.
E imaginou como podia ter se apaixonado por um homem que não podia confiar nela, nem mesmo o suficiente para mos¬trar-lhe o rosto.
Em seu quarto, Richard andava de um lado para o outro, como uma fera enjaulada. Além das paredes, a tempestade rugia, e ele sentia cada raio, cada trovão, ecoando em seu corpo. Passando os dedos nos cabelos, ainda molhados do banho, esfregou a nuca dolorida. Queria ir até ela, tocá-la, mesmo sabendo como aquilo era perigoso. Para os dois.
A noite anterior provara isso. Bastara um toque e todo o autocontrole desaparecera.
Laura queria o que ele não podia lhe dar. Permitir que outro ser humano, além de Dewey, o visse. Ela não entendia o que isso significava. Ele não podia correr o risco. E se ela o rejeitasse? Como ele se sentiria depois?
Viver nas sombras estava acabando com ele, deixando-o mais infeliz a cada dia. Sentia falta do sol, de entrar numa sala com as luzes acesas.
Sentia falta de Laura.
Richard olhou para a grande porta em arco, percebendo que o vento rugia tão forte nos corredores que parecia querer abri-la.
Andando até ela, colocou a mão na maçaneta decorada. Por um momento, viu as cicatrizes na pele e flexionou os dedos. Então, virou a maçaneta e abriu-a.
Laura estava sentada na poltrona, junto à janela, com as per¬nas dobradas para o lado. Apenas uma pequena lâmpada brilhava no canto do quarto, e percebeu como se acostumara ao escuro.
Um raio caiu bem perto, a luz tremeluziu, apagou e voltou em seguida.
Naquele instante, soube que Richard estava ali. Seu corpo estremeceu de antecipação, e apertando o roupão contra o corpo, virou-se para a porta.
— Por que está aqui?
— Honestamente, não sei.
Pelo menos, era sincero, pensou Laura.
— Sente-se — convidou.
Ele deu um passo na direção dela e parou.
— Meu Deus, está gelado aqui dentro — disse, indo até a lareira e colocando mais lenha.
— Não estou com frio.
— Está úmido. Vai acabar doente. E talvez a luz acabe. Richard acendeu um fósforo e a pequena chama iluminou suavemente seu rosto.
Laura viu as marcas no pescoço.
— Não precisava fazer isso.
— Eu sei.
— Saia, Richard.
— Já está cansada da minha companhia?
— É claro que não. Mas sei que não é seguro. — Ela suspirou. — Você nem imagina o quanto eu desejo que me toque. Mas quero mais além de estar em seus braços — confessou, com sinceridade. — Quero tudo de você.
Ele ficou parado, segurando um pedaço de madeira que ia colocar nas chamas.
— Não quero apenas o homem nas sombras, a voz que me faz sentir viva quando diz meu nome. Não apenas o corpo, que não me deixa tocar por completo. — Ela parou como se precisasse de coragem. — Já tive a metade do amor e da atenção de um homem antes. Já tive as migalhas... — Laura engoliu em seco, antes de continuar: — Não vou aceitar isso de novo.
Quando ele não respondeu, o coração de Laura apertou-se e a dor foi quase insuportável. Por fim, ela falou, lentamente:
— Não poderemos ter nada, se não confiar em mim. Tudo parece temporário, como se estivéssemos usando um ao outro.
Por um longo momento, apenas fitou-a, travando uma ba¬talha interna entre o que desejava e o que não podia ter. Richard ergueu a mão para ela e convidou:
— Venha para mim, Laura. Enquanto ainda tenho forças. — A mão dele tremia. — Venha ver o monstro que deseja que a toque.


ownnnn ele é lindo de qualquer jeito !
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